Ao pensar subjetividades e modos de vida no contemporâneo, as violências aparecem como fios que nos atravessam de diversas formas.
Para entender melhor sobre os efeitos das violências em nossos corpos, é fundamental a percepção das várias camadas de violências que acontecem e como várias são normalizadas, normatizadas, institucionalizadas de diversas maneiras.
Com isso, chamo a atenção de que as práticas violências NÃO são somente aquelas cometidas por uma pessoa contra outra, de forma intencional, consciente dos efeitos, ou criminalmente tipificadas com dolo ou culpa.
Isso porque os códigos de leis atuam como razão do Estado, e o que está fora é “somente” subjetivo, modos de vida.
Violências não criminalizáveis costumam ser mais “aceitáveis”. São vistas como em uma roupagem mais amena, mas têm efeitos dos mais devastadores de maneira coletiva.
Essas camadas de violência saltam aos olhos em uma prática clínica e ética em psicologia, e em outros lugares de atuação transversal ou em rede. Os nódulos de dor, aqui, precisam de cuidado para se fazerem diluir.
Essas violências aparecem no silenciamento intelectual das mulheres, ou quando uma mulher pensando precisa de um autor europeu para “validar” de alguma forma suas ideias. Como Grada Kilomba afirma em relação as mulheres negras, seu pensamento é infantilizado, tratado como emocional e pessoal demais, sem valor intelectual, ao passo que o pensamento masculino é racional, rigoroso e preciso. Isso é violência, por não permitir falar, e por não criar lugar de escuta.
Essas violências “aceitáveis” e silenciosas* aparecem, também, na objetificação dos corpos de mulheres, no lugar da amante como objeto de satisfação sexual do homem, ou quando sempre atribuem à mulher a responsabilidade de cuidado solitário da prole (“quem pariu que o embale”); quando se propõem a escutar a mulher pelo comprimento dos shorts, pela grossura das coxas, tamanho das mamas, ao invés de darem escuta à sua voz; com a associação da imagem feminina ao emocional, com o desvalor que a emoção adquire quando em comparação à razão (representado pelo masculino, e supervalorizado).
São violências aos coletivos, não necessariamente direcionada a uma ou outra pessoa.
Toda vez que uma “piada” sobre mulheres é proferida, a violência se dá contra todas, ainda que não tenhamos consciência disso. Toda vez que dizem que mulher é chata, ciumenta e possessiva, que casamento acaba com o desejo sexual do homem, que mulher faz dor de cabeça para não se relacionar sexualmente, que mulher não soube se prevenir e teve um filho de cada homem…essas falas atacam a todas.
Essas falas mantém as mulheres em lugares duros, de dor. Violências não são somente tapas e socos, mas qualquer forma de diminuir ou invalidar lugares que as mulheres ocupam. Nem todas essas camadas de violências serão considerados crimes, mas todas irão corroborar por depreciar os lugares, vivências, fazeres e subjetividades de ser mulher.
Pensar o feminicídio, o estupro, e a interdição do direito de decidir, são debates extremamente urgentes. Dar luz às outras camadas de violências precisa acontecer ao mesmo tempo.
É importante pensar que, entre essas camadas de violência, há camadas de lutas e de potências do feminino, passando entre, escapando, criando lugares de força.
*silenciosas berram!
